A evolução histórica de Secondigliano, o seu papel no narcotráfico e as complexas dinâmicas sociais e políticas que moldam esta zona icónica de Nápoles
Secondigliano, um bairro da periferia de Nápoles, Itália, é um nome que frequentemente surge associado ao narcotráfico e ao crime organizado, em particular à Camorra, uma das mais poderosas organizações criminosas da Itália. No entanto, Secondigliano tem uma história que vai muito além das manchetes criminais, com raízes profundas que remontam à ocupação romana e à subsequente transformação ao longo dos séculos.
Este bairro foi moldado por forças históricas, políticas e sociais complexas que o transformaram num dos principais focos da criminalidade organizada na Europa. Explorámos a evolução histórica de Secondigliano, o seu papel central no narcotráfico, e o contexto social e político que continua a definir este espaço, equilibrando entre o estigma e a luta por regeneração.
1. A História Antiga de Secondigliano
Secondigliano não nasceu como um local de marginalização e crime. Na verdade, este bairro tem uma longa história que remonta à antiguidade. A sua localização estratégica a norte de Nápoles fez com que fosse uma área de ocupação já na época romana. Por estar situada perto das principais rotas de transporte e acesso ao norte da Itália, a região foi considerada uma importante zona agrícola e de comércio durante séculos.
O nome “Secondigliano” deriva do latim “Secundus Ager”, que significa “segunda terra”. A origem deste nome tem provavelmente a ver com a sua proximidade e dependência de Nápoles como centro administrativo e cultural. Durante a Idade Média, Secondigliano era uma zona rural, composta principalmente por campos férteis e algumas pequenas aldeias. A sua importância como uma zona agrícola manteve-se até meados do século XX, quando uma urbanização desordenada começou a transformar o perfil da área.
2. O Crescimento Demográfico e Urbanização Desordenada no Século XX
Foi no pós-Segunda Guerra Mundial que Secondigliano sofreu uma transformação radical. Com o aumento da população e a migração interna das áreas rurais para as cidades, Nápoles começou a expandir-se de forma desorganizada. Nos anos 60 e 70, Secondigliano foi alvo de um boom populacional e urbanístico que a levou de uma área rural a um subúrbio densamente habitado.
A ausência de planeamento urbano eficaz e a falta de investimento em infraestruturas resultaram num bairro sobrepovoado e economicamente desfavorecido. As políticas habitacionais públicas falharam em responder às necessidades da população crescente, criando condições para que o crime organizado encontrasse um ambiente propício para crescer. Os edifícios de habitação social, conhecidos como “Le Vele” (As Velas), construídos na década de 70, tornaram-se símbolo da decadência e da criminalidade na zona.
3. A Ascensão da Camorra em Secondigliano
Com o colapso das estruturas económicas formais e a pobreza a aumentar, a Camorra, uma das mais antigas organizações mafiosas de Itália, começou a enraizar-se em Secondigliano. O bairro tornou-se um dos centros de poder da Camorra nas décadas seguintes, com as suas atividades a centrar-se principalmente no narcotráfico.
Enquanto a máfia siciliana (Cosa Nostra) e a Ndrangheta (da Calábria) dominavam outras áreas, a Camorra fez de Nápoles o seu principal centro de operações. A Camorra, ao contrário das suas rivais, sempre teve uma estrutura mais horizontal, sendo composta por várias “famílias” ou clãs que competem entre si pelo controlo de territórios. Em Secondigliano, um desses clãs destacava-se: o clã Di Lauro, que se tornaria um dos mais poderosos e temidos da história do crime organizado em Nápoles.
O Clã Di Lauro e o Narcotráfico Internacional
Nos anos 90 e início dos anos 2000, o clã Di Lauro liderado por Paolo Di Lauro e mais tarde pelo seu filho Cosimo, transformou Secondigliano num dos maiores centros de distribuição de droga da Europa. Através de uma rede internacional que envolvia fornecedores na América do Sul e contactos com outras máfias europeias, o clã Di Lauro controlava um império multimilionário de narcotráfico.
A operação do clã era altamente organizada, com diferentes secções encarregadas de áreas específicas como o transporte, venda e segurança. O tráfico de drogas, principalmente heroína e cocaína, tornou-se a principal fonte de rendimento da Camorra em Secondigliano. O clã usava a vasta rede de edifícios e bairros como Le Vele para esconder e distribuir droga, ao mesmo tempo que captava jovens locais desempregados, oferecendo-lhes uma forma rápida de obter dinheiro em troca da lealdade ao clã.
A Primeira Guerra de Secondigliano (2004-2005)
A disputa interna pelo controlo do império Di Lauro deu origem à chamada Primeira Guerra de Secondigliano, entre 2004 e 2005. Após a prisão de Paolo Di Lauro, o seu filho Cosimo assumiu o controlo do clã, mas alguns dissidentes, liderados por Raffaele Amato, tentaram desafiar a sua liderança. O conflito resultou numa onda de violência que deixou dezenas de mortos nas ruas de Secondigliano, colocando o bairro nas manchetes internacionais.
A guerra resultou na fragmentação temporária do clã Di Lauro, mas também destacou a dimensão do problema social e económico que Secondigliano enfrentava, com a Camorra a controlar vastas áreas do bairro e a funcionar como uma “economia paralela” na ausência de alternativas legítimas para a população local.
4. A Sociedade e Cultura de Secondigliano
Para além do crime organizado, Secondigliano tem uma cultura própria, influenciada por séculos de história e pelas condições sociais em que os seus habitantes vivem. O bairro é uma amálgama de tradições napolitanas e de uma identidade periférica, marcada pela marginalização, mas também pela resistência cultural.
Vida Comunitária e Resiliência
Apesar de muitas vezes ser retratado como um bairro problemático, Secondigliano tem uma vida comunitária rica. A música, especialmente o rap napolitano, tornou-se uma forma de expressão para os jovens, muitos dos quais usam este meio para contar as suas histórias de dificuldades e esperança. Bandas locais de rap, como os Co’Sang, ganham popularidade ao falar abertamente sobre a vida nas áreas periféricas de Nápoles, destacando os desafios e as injustiças que enfrentam.
Religião e Festa
A religiosidade também desempenha um papel importante na vida de Secondigliano. As festividades religiosas, como a Festa de San Gaetano, são momentos de união entre a comunidade e uma forma de encontrar consolo em meio às dificuldades do dia-a-dia. A fé católica está profundamente enraizada na cultura do bairro, e muitos residentes recorrem à religião como fonte de esperança e resistência.
5. Secondigliano no Contexto Atual: Desafios e Esperança de Regeneração
Hoje, Secondigliano continua a lutar contra o estigma associado ao crime e à pobreza. Embora a Camorra ainda tenha uma forte presença, várias iniciativas têm sido implementadas para tentar regenerar o bairro. O governo local, em colaboração com organizações comunitárias, tem feito esforços para reabilitar as infraestruturas e promover alternativas económicas para os jovens, como o acesso a educação e programas de emprego.
A demolição parcial de Le Vele, que se tornaram um símbolo de decadência urbana, faz parte deste esforço para transformar o bairro e melhorar a qualidade de vida dos seus residentes. No entanto, o caminho para a regeneração de Secondigliano ainda é longo e incerto, com muitos desafios a serem superados.