Em junho de 2001, um veleiro carregado com meia tonelada de cocaína encalhou na costa norte de São Miguel, mudando para sempre a vida em Rabo de Peixe.
Mais de duas décadas depois, a Netflix recupera o caso real com a estreia da segunda temporada da série Rabo de Peixe e um documentário sobre a história verídica. Depois do sucesso que foi a primeira temporada, que misturava, ação, drama, humor e algum mistério, o surgimento da segunda temporada não será propriamente uma novidade ou algo inédito para o canal de streaming. Porém, o anuncio de que também iria estrear um documentário sobre a parte verídica, precisamente no mesmo dia da estreia da segunda temporada, veio ainda deixar mais curiosidade, principalmente depois de um trailer bombástico divulgado umas semanas antes da estreia .
O dia em que o mar devolveu cocaína à costa açoriana
Em junho de 2001, o sossego da vila piscatória de Rabo de Peixe, na ilha de São Miguel, foi interrompido por um episódio que ficou para sempre na história recente dos Açores. Um veleiro Sun Kiss 47, com 14 metros de comprimento e proveniente da América do Sul, naufragou perto da costa, libertando centenas de pacotes de cocaína, com um grau de pureza poucas vezes antes vista. O que começou como um acidente marítimo, depressa se transformou num fenómeno social… mas, e principalmente, num desastre público.
A embarcação transportava mais de 500 quilos de cocaína — uma carga avaliada em cerca de 150 milhões de euros em valores atuais. O mar revolto e o vento forte fizeram com que o mastro partisse, levando a tripulação a atirar os fardos ao mar para evitar a detenção. Porém, a corrente marítima tratou de os devolver à costa.
Quando a curiosidade se tornou em tragédia
Quando os habitantes de Rabo de Peixe, uma comunidade com pouco mais de 7.000 pessoas e fortemente dependente da pesca, começaram a encontrar pacotes brancos a boiar junto ao porto e nas praias, a verdade é que muitos não faziam sequer a mais pequena ideia do que se tratava. Já outros, muito rapidamente perceberam que se tratava de droga, ainda que ninguém tivesse tido a verdadeira noção da gravidade da substância que tinham em mãos.
O resultado foi, no mínimo caótico. A cocaína, com pureza acima dos 80%, começou rapidamente a circular entre a população. Relatos da época descrevem copos de cerveja com cocaína dissolvida, carapaus empanados com o pó (como se de farinha se tratasse) e pessoas a experimentar sem qualquer noção real do perigo.
A Polícia Judiciária conseguiu recuperar cerca de 400 quilos de droga, mas o resto perdeu-se entre consumo e, nomeadamente, tráfico local. Nos dias seguintes, os hospitais da ilha registaram um aumento súbito de overdoses e inclusivamente mortes por intoxicação, levando as autoridades de saúde e os meios de comunicação, como a RTP Açores, a lançar campanhas de alerta urgentes.
O “Italiano” de Rabo de Peixe e a investigação policial
A investigação por parte da polícia, acabaria por conduzir ao nome que ficaria para sempre ligado ao caso: Antonino Quinci, um italiano contratado para navegar o veleiro desde a Venezuela até à Europa. Quinci acabaria por ser detido, julgado e condenado a nove anos e dez meses de prisão, todavia, a sua história teve episódios quase cinematográficos.
Dez dias após ser preso em São Miguel, Quinci fugiu da prisão, tendo sido recapturado semanas depois. Acabaria por ser transferido para o continente, cumprindo pena em Coimbra. Anos mais tarde, voltou a ser notícia por fugir novamente da justiça, desta vez no Brasil, onde se encontrava em prisão domiciliária.
Na ilha, Quinci tornou-se uma figura lendária. O seu nome é ainda usado como referência à pureza da cocaína: “é da qualidade do italiano”, é a frase mais utilizada por alguns locais quando se referem ao episódio.

Feridas que o tempo ainda não curou
O episódio de 2001 teve consequências profundas nos Açores. O consumo de cocaína, até então restrito a elites urbanas, espalhou-se entre a população mais pobre, gerando problemas de dependência, os quais muitos persistem ainda hoje.
Muitos dos jovens que entraram em contacto com a droga na época desenvolveram vícios em cocaína e heroína. Isto obrigou a que fossem criados serviços móveis de apoio e distribuição de metadona, na tentativa de conter o problema. Médicos e psicólogos locais recordam aquele período como um tempo de pânico e descontrolo, em que as autoridades tentavam travar uma tragédia que crescia de forma invisível.
Durante anos, o tema foi tabu. O caso foi abafado por motivos políticos e turísticos, temendo-se que a imagem da região ficasse associada ao tráfico. Só recentemente voltou a ser amplamente discutido — em parte graças à popularidade da série “Rabo de Peixe”, que reavivou a memória do episódio.
Da realidade à ficção: a história que inspirou a Netflix
A série Rabo de Peixe, ou Turn of The Tide, da Netflix, que estreou a primeira temporada em maio de 2023, parte deste acontecimento real, mas mistura factos e ficção. O naufrágio e a descoberta da droga são elementos verídicos, mas as personagens e o enredo foram criados para explorar o impacto humano e moral da situação.
Enquanto a realidade mostra uma comunidade traumatizada e marcada por pobreza, a série retrata jovens pescadores que vêem na droga uma oportunidade de fuga e riqueza. É uma história sobre ambição, sobrevivência e culpa — temas universais que deram à ficção um tom mais próximo de um thriller social.
No entanto, a Netflix quis agora distinguir claramente o real do inventado. No dia 17 de outubro de 2025, estreia a segunda temporada da série e, em simultâneo, um documentário inédito sobre a história verdadeira, com testemunhos de habitantes, jornalistas, médicos e agentes da Polícia Judiciária que viveram o caso.
O “Elefante na Sala“
No fim, o efeito mais devastador da cocaína de alta pureza foi o aparecimento de um novo problema social: a toxicodependência em heroína. Suzete Frias, então diretora da Casa de Saúde de Ponta Delgada, resume a tragédia: “O efeito da cocaína era tão feroz que as pessoas começaram a consumir heroína para conseguir dormir.”
- A classe média-alta internou os seus filhos em clínicas no continente.
- A classe operária virou-se para a heroína, dando origem a uma dependência que antes era inexistente.
Tudo foi tratado com um halo de secretismo, para que não se transformasse numa questão de Estado ou repercutisse internacionalmente. O drama social nos Açores, a 1.400 quilómetros de Lisboa, tornou-se um “pomposo — mas discreto — elefante na sala”, cujos bramidos eram difíceis de escutar no continente. A verdade é que, ficção à parte, Rabo de Peixe, “vítima” do seu próprio isolamento geográfico e com uma pitada de negligência, fizeram com ficasse particularmente vulnerável a uma meia tonelada de infortúnio.






