A Violência Doméstica, em Portugal, continua a somar números assustadores. Uma realidade conhecida de perto por muitos e por muitos outros através da ficção ou documentários.
A violência doméstica: uma ferida aberta
A violência doméstica continua a ser uma das mais graves violações dos direitos humanos em Portugal. Em 2024, segundo dados da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), mais de 28 mil pessoas pediram ajuda devido a situações de maus-tratos físicos, psicológicos e sexuais. o que representa uma média superior a 75 vítimas por dia. E estima-se que apenas uma fração dos casos seja denunciada — muitos permanecem escondidos pelo medo, pela vergonha e pela dependência emocional ou económica. A maioria das vítimas continua a ser do sexo feminino, mas há também um número crescente de homens e idosos que sofrem em silêncio.
Este tipo de violência não se limita, porém, ao contacto físico. A agressão psicológica — feita de humilhações, ameaças, controlo e manipulação emocional — é muitas vezes o primeiro passo num ciclo que pode durar anos. As vítimas sentem-se, frequentemente, presas numa teia de medo, dependência económica e emocional, e vergonha. Muitos casos permanecem ocultos, sem denúncia, por receio de represálias ou por falta de apoio social e familiar.
As consequências são devastadoras. Para além das marcas físicas, as vítimas enfrentam ansiedade, depressão, stress pós-traumático e dificuldades em retomar a confiança e a autonomia. O impacto estende-se também às crianças que testemunham a violência, afetando o seu desenvolvimento emocional e o seu futuro.

O perfil dos agressores e as motivações mais comuns
Os agressores tendem a partilhar padrões comportamentais semelhantes: controlo, ciúme, impulsividade e fraca gestão emocional. Muitos apresentam antecedentes de violência ou cresceram em ambientes onde o abuso era normalizado. A psicologia aponta ainda para a insegurança e o sentimento de posse como fatores determinantes. Noutros casos, o consumo de álcool e drogas atua como catalisador de comportamentos violentos já latentes.
A justiça portuguesa tem vindo a endurecer as medidas de proteção, mas o caminho ainda é longo. O isolamento das vítimas e a falta de resposta imediata em certas zonas do país continuam a dificultar a prevenção. A APAV, por sua vez, mantém a Linha de Apoio à Vítima 116 006 — gratuita, confidencial e disponível nos dias úteis — como um dos pilares fundamentais para quebrar o silêncio e apoiar quem decide pedir ajuda.

As consequências: o trauma invisível
Os efeitos da violência doméstica vão muito além do momento da agressão. As vítimas vivem com ansiedade, depressão, insónias e sintomas de stress pós-traumático. Em casos extremos, podem desenvolver sentimentos de culpa ou desistência da própria vida. As crianças que testemunham a violência, mesmo sem serem alvo direto, são consideradas vítimas secundárias e apresentam elevados riscos de repetir ou sofrer comportamentos abusivos na idade adulta.
A violência doméstica também tem um impacto económico e social profundo. As ausências laborais, os custos com saúde mental e física, e a sobrecarga dos serviços de proteção social tornam este problema um desafio coletivo. O Estado português tem reforçado as medidas de apoio — como as Casas de Abrigo e as Equipas de Apoio à Vítima da APAV — mas a resposta ainda enfrenta limitações, sobretudo em regiões mais rurais, onde o acesso à proteção é mais difícil.
Psicólogos e criminologistas destacam que a violência doméstica resulta, em grande parte, de uma cultura de poder e desigualdade, onde a autoridade masculina e o controlo sobre o outro são vistos como demonstrações de força. O processo de reabilitação do agressor é complexo, exigindo acompanhamento terapêutico e uma mudança profunda de mentalidade.
Quando a violência entra no ecrã: o papel dos media e da cultura televisiva
Nos últimos anos, o público português tem assistido a vários episódios de agressão física ou verbal em programas televisivos. Embora esses casos não sejam equiparáveis à violência doméstica — por não envolverem relações de dependência ou controlo íntimo —, expõem uma problemática semelhante: a normalização da violência.
Quando um gesto agressivo é transmitido em horário nobre e amplamente debatido nas redes sociais, o risco é o de transformar a violência em espetáculo. Mesmo que haja censura pública ou penalização imediata, o simples facto de a agressão ser exibida repetidamente pode banalizar comportamentos que, no contexto doméstico, são devastadores.
A cultura mediática tem uma responsabilidade central: distinguir claramente o que é entretenimento do que é agressão real. Mostrar um ato de violência como se fosse apenas “um momento de tensão” ignora o impacto psicológico que tais imagens têm, sobretudo entre os mais jovens. É neste ponto que o discurso público sobre a violência deve ser rigoroso, ético e pedagógico.
As semelhanças na raiz do problema
A violência doméstica e a agressão mediática partilham um mesmo denominador comum: a falta de empatia e o abuso de poder. Em ambos os casos, alguém tenta impor-se sobre o outro através da força ou da humilhação. A diferença está no contexto — uma acontece em privado, outra em ambiente público —, mas a origem é idêntica: a dificuldade em gerir frustração, rejeição ou conflito sem recorrer à violência.
Este tipo de comportamento é também reflexo de uma cultura onde o conflito é, muitas vezes, visto como prova de personalidade ou autenticidade. Porém, a violência, seja em casa, na rua ou em televisão, nunca é uma forma de comunicação. É sempre um ato de destruição — e deve ser tratado como tal.
“Casa Abrigo”: a ficção que espelha a realidade
Neste contexto, a RTP lança Casa Abrigo, uma série de ficção com realização de Márcio Laranjeira, que estreia a 27 de outubro na RTP1 e ficará também disponível na RTP Play. Com seis episódios de cerca de 50 minutos, a produção inspira-se em histórias verídicas de violência doméstica recolhidas em casas de abrigo portuguesas, em colaboração com a APAV.

Durante a preparação da série, o realizador visitou várias casas de abrigo, ouvindo relatos comoventes de vítimas que encontraram nesses espaços um refúgio e uma nova oportunidade de vida. Casa Abrigo mostra o percurso das pessoas acolhidas — do primeiro momento de segurança à difícil aceitação da condição de vítima, passando pela reconstrução da autoestima e da coragem para recomeçar.
Produzida pela Fado Filmes, com o apoio do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), a série aposta numa abordagem humana e emocional, mostrando a importância do acolhimento, do acompanhamento psicológico e jurídico, e da solidariedade como pilares na recuperação.
Uma série com propósito social
Mais do que uma narrativa dramática, Casa Abrigo cumpre uma missão de sensibilização pública. Ao transformar testemunhos reais em ficção, a série dá voz a quem raramente é ouvido, alertando, assim, para a complexidade da violência doméstica e para o impacto que deixa nas vítimas e nas suas famílias. O objetivo é claro: quebrar o silêncio e incentivar a denúncia. A ficção torna-se, assim, um veículo de empatia e consciencialização, mostrando que o fim da violência começa com o reconhecimento da sua existência e com o apoio a quem mais precisa.

Um espelho de coragem e reconstrução
A violência doméstica não é uma questão privada — é um problema social que exige ação contínua. Casa Abrigo surge como um retrato fiel e necessário de um fenómeno que, apesar de silencioso, grita por justiça e humanidade. Ao trazer estas histórias para o ecrã, a RTP reforça o papel do serviço público de televisão: informar, sensibilizar e inspirar mudança.
Se conhece alguém em situação de violência doméstica ou se é vítima, pode contactar a Linha de Apoio à Vítima 116 006. O primeiro passo para a liberdade é pedir ajuda — e nunca é tarde para o fazer.






