Que a IA já está presente em força nas nossas vidas, não é segredo para ninguém. Mas sabe ou alguma vez imaginou o quanto ela nos “manipula” no mercado das compras online?
Ainda que alguma vez já tenha pensado nisso, é mais que provável que nunca imaginado até onde vai esse comportamento oculto da IA nas compras online. Esta vigia permanente e, de certa forma, manipuladora, para, por exemplo, ajustar preços em tempo real — ou também conhecida por personalized pricing ou surveillance pricing, vai muito mais longe do que alguma vez o cidadão comum pensou.

(Créditos: Pexels)
IA, Compras Online e Preços Personalizados: como chegámos aqui
Nos últimos anos, tornou-se comum que o preço que observado num site de compras ou serviço varie dependendo de muitos fatores que vão além do produto ou do custo de produção. Frases como “Este preço é só para si!”, que outrora era um sinal de desconto exclusivo, ganhou um novo e sinistro significado no mundo das compras online.
Isto porque, A Inteligência Artificial (IA) está a vigiar o nosso comportamento digital e a ajustar os preços dos produtos em tempo real, num fenómeno conhecido como personalized pricing (preços personalizados) ou, de forma mais crítica, surveillance pricing (preços de vigilância), o que permite às empresas “adivinhar” o quanto se está disposto a pagar, ou avaliar a tua urgência, perfil ou poder de compra, ajustando o preço “às suas circunstâncias”.
O alerta mais recente veio através de um relatório da Federal Trade Commission (FTC), a entidade norte-americana de defesa dos consumidores, que expõe a dimensão da recolha de dados e a sofisticação dos algoritmos que decidem quanto pagamos ou o quanto “queremos” pagar nas compras online.
E os fatores que os algortimos utilizam vão desde os mais clássicos aos, seguramente, mais estranhos.
- localização geográfica;
- histórico de navegação (browser history);
- idade;
- estado de bateria do telemóvel;
- movimentos do rato (mouse‐tracking);
- produtos deixados no carrinho;
- tempo que estás numa página;
- e até a marca do equipamento que utilizamos mais regularmente, seja computador ou smartphone.
Evidências recentes, estudos e investigações
- Relatório da FTC (Federal Trade Commission, agência reguladora dos EUA para competição e proteção do consumidor)
- Já este ano, a FTC publicou dados de um estudo Surveillance Pricing, segundo os quais empresas usam dados muito variados (desde localização exata, histórico de compras, demografia, até movimentos do rato) para definir preços individualizados para bens ou serviços.
- Essas práticas são feitas via intermediários (empresas que oferecem tecnologias de personalização de preços) que recolhem, ou agregam dados dos consumidores para aplicar preços ou promoções diferentes, com base nesses perfis.
- Todavia, há preocupação de que, além de tal poder comprometer a concorrência, pode ainda ser algo totalmente oculto para os consumidores, facto que podem conduzir a práticas desleais ou discriminatórias.
- Empresas de transporte aéreo / companhias de voo
- A Delta Air Lines foi notícia: está a explorar o uso de IA para definir preços de bilhetes de avião com base em dados de consumidor individual, para determinar quanto cada pessoa estaria disposta a pagar.
- Contudo, a empresa afirmou que não está (ou que não estará) a usar dados pessoais para preços individualizados, em resposta a críticos.
- Estudos académicos
- Há pesquisas recentes que mostram que quando várias empresas usam algoritmos similares para personalização de preços, isso pode reduzir a concorrência (isto porque os algoritmos “aprendem” de fontes de dados semelhantes, acabando, por isso, por convergir em práticas semelhantes).
- Outro estudo, analisa ainda como perfis estratégicos, feitos através de redes sociais ou dados públicos, podem permitir que os vendedores personalizem preços, mesmo que os consumidores tentem evitar rastreamento direto.
- Casos reais / testemunhos dos consumidores
- Para além das grandes empresas aéreas, há diversos relatos de consumidores que afirmam ter notado variações de preços de produtos conforme se procura várias vezes, se se visita via app ou via browser, ou dependendo até do dispositivo.
- Também há casos diferenciados para apps de relacionamento, bilhetes ou serviços premium, alturas em que certos grupos (por exemplo, pessoas entre 30-49 anos) foram cobrados com preços mais caros.
O Segredo do Algoritmo: quem decide o seu preço?
| Cenário | Fator usado pela IA / algoritmo | O que muda / efeito percebido |
|---|---|---|
| Localização geográfica | IP, região, proximidade do utilizador a loja física | Preços maiores para quem estiver “mais perto” ou em zona mais próspera. Exemplo da Target: vender TV mais barato online para quem está longe, mais caro se estiver perto. (caso difundido) |
| Dispositivo / sistema operativo | Tipo de dispositivo (Mac vs Windows), app vs browser | Viagens de avião: utilizadores no Mac foram redirecionados para hotéis mais caros, segundo histórico que clientes de Mac “gastam mais”. |
| Estado da bateria | Sensor bateria do telefone ou indicação de carga | Se o dispositivo está quase sem bateria, o algoritmo “supõe” que o utilizador quer terminar compra rapidamente → possível preço majorado. Relatos desse tipo surgem em estudos da FTC. |
| Tempo no site / carrinho abandonado | Se deixas o produto no carrinho, quanto tempo demoras, quantas vezes visitas a página | Preço ou promoção especial pode aparecer para incentivar a finalizar, mas também pode aumentar preço se “entender” que estás desesperado ou que esse produto é importante. |
| Dados demográficos | Idade, género, perfil socioeconómico | Apps de encontros cobraram mais a grupos de meia-idade; outras empresas oferecem descontos personalizados de modo diferente conforme perfil demográfico. |
| Pesquisa prévia / histórico | O que procuraste antes, quanto pesquisaste, comparaste | Se fizeste muitas pesquisas de hotel, voo, produto, preço pode subir — ou tens um “desconto” ou “oferta personalizada” que na verdade deixa de fora comparações. |
Segundo um estudo da Deloitte, 40% das empresas que recorrem à IA para personalizar a experiência de consumo, aplicam esta tecnologia especificamente aos preços e promoções. O objetivo não é apenas a eficiência, mas a maximização do lucro em cada transação individual.
Implicações para o consumidor e para o mercado
- Transparência reduzida: Muitas destas práticas são invisíveis para o consumidor — não aparece nada a dizer “este preço é personalizado só para si com base no que sabe”. Isso dificulta comparar preços de forma justa ou perceber se está a pagar mais do que outra pessoa.
- Possibilidade de discriminação: Preços baseados em demografia ou localização podem reforçar desigualdades. Por exemplo, pessoas de áreas com menor poder de compra, ou idades específicas, poderão sair penalizadas.
- Concorrência fragilizada: Se todas as empresas utilizarem intermediários semelhantes e algoritmos semelhantes, eles acabam por convergir em práticas que reduzem a competição real.
- Risco legal/regulação:
• A FTC está em investigação de várias empresas e intermediários.
• Leis de proteção ao consumidor podem evoluir para obrigar mais transparência ou até proibir certas práticas. Por exemplo, nos EUA já há pedidos de informação pública e potenciais projetos de lei para limitar o uso de IA para personalizar preços com base em dados pessoais.
• Em alguns locais, a prática de “preço “oficial” + “desconto” diferenciado” pode ser considerada enganosa se nem todos os consumidores tiverem acesso ao preço nominal base.
Boas práticas do consumidor: como evitar pagar “mais do que devia”
Aqui estão estratégias que muitos especialistas neste tema sugerem:
- Comparar preços com diferentes dispositivos (usar browser vs app, limpar cookies, separadores inprivate).
- Mudar localização via VPN (ou desligar localização ou usar IP diferente).
- Visitar o site mais vezes, deixar o produto no carrinho, sair, voltar — ver se aparece algum desconto ou oferta, ou se o preço sobe. (Em alguns casos, a empresa “oferece” um “cupão” para convencer a comprar, mas pode ser enganoso.)
- Utilizar alertas de preço ou sites que reúnem preços de vários revendedores para ficar com uma noção do “preço de mercado”.
- Ser crítico à urgência forçada — mensagens como “últimas horas”, “só mais x minutos”, entre outras, podem ser usadas apenas como falsos padrões de urgência, para forçar a compra.
- Ler políticas de privacidade — é importante perceber que dados recolhem, se permitem desativar certas formas de rastreamento, se há opção de não ser “perfilado”.
- Registar reclamações ou usar órgãos de defesa do consumidor se suspeitar que é cobrado injustamente com base em características pessoais, ainda que a ausência de uma legislação clara e inequívoca deixe muita margem de manobra para estes comportamentos.
Curiosidades & Factos interessantes
- A FTC declarou que mais de 250 empresas estavam a usar ferramentas de intermediários que recolhem dados para personalizar preços para bens e serviços variados, desde roupas até produtos de mercearia.
- O poder da IA permite que preços sejam ajustados em frações de segundos, com base em dados em tempo real — não só histórico. Por exemplo, se detetar que está a demorar muito tempo numa página, pode “sugerir” urgência ou indecisão, e isso ser usado como medida para “empurrar” o utilizador para uma compra impulsiva.
- Empresas de “intermediação de dados” e consultoria (como McKinsey, Accenture, etc.) aparecem referidas nos documentos da FTC como fornecedores de tecnologias ou serviços que querem fazer surveillance pricing. Ou seja, vai muito para além de “o site da loja” — há todo um mercado por trás disto.
- Alguns países terão regulação mais rígida em relação a práticas de orientação ao consumidor, transparência, proteção de dados. Em muitos casos, o “direito ao desconhecido” do consumidor — ou seja, de não ser usado para perfilamento — começa a ser discutido como parte de direitos de privacidade.
A Nova Era da Vigilância: Implicações e o Futuro
A prática de personalized pricing levanta questões sérias sobre transparência e equidade no mercado digital. Se o preço que pagamos não reflete o valor do produto, mas a nossa urgência ou poder de compra, o consumidor é colocado numa desvantagem extrema. A intervenção de entidades como a FTC nas compras online, mas não só, demonstra a preocupação crescente dos reguladores em proteger os consumidores.
À medida que a IA se torna mais sofisticada, é crucial que os consumidores estejam cientes de que cada clique e cada scroll estão a ser monitorizados. O futuro das compras online exigirá, mais do que nunca, que se adote uma postura ativa na proteção dos dados pessoais para evitar o pagamento do “preço de vigilância”.